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Post Info TOPIC: O Mundo a Preto e Branco


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O Mundo a Preto e Branco


O Mundo a Preto e Branco - 24 de Abril de 1974

Houve um tempo em que o Mundo era a preto e branco.
É verdade.
Era um mundo de certezas inabaláveis, onde tudo estava onde devia estar e nunca poderia ser de outra forma.
Era um mundo encerrado em si próprio, cego e autista ao tempo que passava lá fora.
Era um mundo repleto de alegrias estéreis como só a alegrias dos pobres podem ser, dos orgulhosamente pobres, orgulhosamente sós nesta ditosa Pátria minha amada, que ostentavam lenços brancos de pureza imaculada na Cova da Iria, acenando a despedida à Virgem como acenavam a despedida ao filho num cais cheio de tropa que embarcava – “Adeus, até ao meu regresso”, diziam – e deixavam para trás uma recém-casada e uma promessa de fidelidade extrema, para o que desse e que viesse, desde que viesse vivo, o pranto e a alma destroçada da mãe que, vendo o filho a partir via-se a ela própria partir-se em mil pedaços de sangue como aquele que tantas vezes encharcou a picada.
Adeus, até ao meu regresso” e muitos regressaram vivos e inteiros.
Outros regressaram vivos.
Houve ainda outros que não regressaram.
E há ainda aqueles que, tendo regressado, deixaram lá ficar a alma.

Houve um tempo em que o Mundo era a preto e branco.
É verdade.
Era um mundo pequenino povoado por uma imensidão de fantasmas vestidos da mesma forma, falando da mesma maneira, fazendo todos a mesma coisa, todos os dias, todas as horas, ad eternum, amén.
Espero que esta vos vá encontrar de saúde que eu por cá estou bem, graças a Deus” e a palavra saudade era a força que unia todas as mulheres de negro com o filho no Ultramar a combater os turras, o marido na França ou na Alemanha a fazer o que os outros não queriam, era o estímulo último para quem já não tinha forças para o choro como as raparigas prometidas do soldado que, entregues ao abandono, guardavam carta após carta, fotografia após fotografia, quantas para guardar eternamente com uma vela acesa “Desejo a todos um Feliz Natal e um Ano Novo cheio de ‘propriedades’, um beijo para os meus pais, os meus irmãos, para a Laurinda e para a Julinha – adeus, até ao meu regresso” poderia ter dito o Rangel de quem a única coisa que vimos regressar foi um caixão que não quiseram abrir.
Poderia ter dito o Rangel de G3 em riste numa picada qualquer de um sítio qualquer do qual nunca saberia o nome pois se soubesse diria um dia “Morri na picada do Kunene, estava Sol e a poeira entrava-me pela camisa, tapava-me os poros, não deixava respirar…” mas nem isso pôde o Rangel dizer.

Houve um tempo em que o Mundo era a preto e branco.
É verdade.
“Foram os turras…”
“E o que são turras?”
“São pretos maus que querem roubar a terra aos Portugueses.”
“Os pretos são maus?”
“Não. Nem todos. Alguns até são quase como nós, já quase sabem falar português e tudo…”
“E porque é que eles querem roubar as terras a Portugal?”
“Olha filho: tu sabes que os turras não são como nós… eles querem fazer as coisas à maneira deles. Mas África é nossa! Fomos nós que descobrimos, fomos nós que lhes ensinamos tudo, eles nem sequer se vestiam… vê lá! E agora querem roubar-nos Africa?”
“E foi por isso que mataram o Rangel?”
“O Rangel morreu a defender a Pátria. O Rangel é um herói.”

Encostei-me a ela.
Eu sabia que um dia também iria defender a Pátria, iria matar turras e ser herói.

Houve um tempo em que o Mundo era a preto e branco.
É verdade.
A sala de aula surda-muda inclinava as paredes para nós com todo o seu peso e, anti-séptica e protectora velava por nós a Santíssima Trindade logo ali, por cima do quadro negro: ao centro, o Senhor Presidente da República Portuguesa Almirante Américo Thomaz, logo seguido pela sua direita pelo Senhor Presidente do Conselho Professor Marcelo Caetano, grande homem que nos entrava porta dentro pela televisão nas célebres “Conversas em Família”, e à esquerda do Senhor Presidente, sempre atento mesmo lá do além, o Senhor Professor António de Oliveira Salazar.
Todos eles, obviamente capacitados pela solene presença do crucifixo logo acima da Presidência.
E a Pátria era grande.
Feita de homens bravos, porém humildes, a quem as riquezas terrenas não se comparavam à suprema honraria de construir a Pátria, esta estendia-se pelos quatro cantos do Mundo: Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde, Macau, Timor, Goa, Damão, Diu… éramos grandes e queríamos manter-nos assim.
Os descobridores do Mundo, todos Portugueses, não tinham feito todos os sacrifícios, não tinham tantos morrido às mãos dos selvagens que a custo cristianizamos das formas mais horrorosas como só gente profana sabia imaginar para agora entregarmos tudo.
Não.
As mães Portuguesas haviam ainda de gerar muita tropa de Infantaria, que era da mais pobrezinha mas ainda mais honrada… venham eles.

Fazíamos cópias em cadernos com duas linhas de onde não podíamos fugir, ou a letra, e essas linhas regulavam toda a nossa arte e todo o nosso ofício de copiar, escrever e reescrever vezes sem conta, com letra cada vez mais perfeita, tudo o que já tinha sido copiado, escrito e reescrito com letra mais que perfeita vezes sem conta por gerações que, vezes sem conta olharam para aquelas duas linhas e pensaram como hei-de eu sair destas duas linhas, o que farei fora delas, e que, no entanto, tiveram que ir para a França, Alemanha, Venezuela, Brasil, Estados Unidos, Canadá, a diáspora dos crentes da Nossa Senhora e das duas linhas em papel mata-borrão.

Houve um tempo em que o Mundo era a preto e branco.
É verdade.
E o branco espalhava-se anarquicamente sobre o negro do quadro à medida que o Farinha, rapaz para os 12 anos que andava ainda connosco na 4ª classe e que compensava o fraco aproveitamento na aritmética e na gramática com soberbas prestações físicas e lealdade comprovada na Mocidade portuguesa – francamente aplaudido por todos nós que, não tendo a farda, sonhávamos vir um dia a tê-la - dizia eu, à medida que o Farinha tentava resolver um problema aritmético por entre vergastadas e reguadas, genuflexões e outras torturas caridosas muito em voga na época – nada que não consolidasse o verdadeiro carácter heróico de uma Juventude que se queria forte de ideais e de convicção inabalável – todos nós íamos rindo à socapa.
A páginas tantas, estava eu já a olhar pela janela tentando compreender o que era o barulho lá fora, entra o Senhor Director que segreda qualquer coisa à Senhora Professora que, extática, fica ali, vira para o Senhor Director, vira para o Crucifixo quando, finalmente, resolve tirar-nos da sala de aula e levar-nos para o salão principal – aquele onde víamos os slides do S. João Bosco aos Sábados de manhã.
Meninos, houve uma… coisa e eu quero que todos fiquem quietinhos que eu vou telefonar para os vossos paizinhos vos virem buscar.
Fiquei preocupado: nós não tínhamos telefone.
Comecei a juntar dois mais dois, os pais que vinham buscar os filhos e, atrapalhados pegavam neles e “ai Meu Deus, só espero que não aconteça nada” ou “ó Senhora Professora, Deus Nosso Senhor nos ajude que se eles entram por aqui…” e cheguei a uma conclusão, a única conclusão possível:
Os turras tinham invadido Portugal Metropolitano.
Era o dia 25 de Abril de 1974.


CT



-- Edited by Senhor Anonimo Teixeira at 01:29, 2005-05-15

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