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Post Info TOPIC: À espera da alta divina


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À espera da alta divina


Sandra ouvia Satanás atrás da porta a louvar-lhe a beleza ao mesmo tempo que a prevenia: Ia matá-la. Ia matá-la. Ia matá-la.
Esmeraldo zangou-se com a vizinha, pegou num lavatório grande e partiu-lhe a porta de casa e a janela.
Jaime apercebeu-se que alguém do Partido tinha posto droga no café para o tramar e recusou bebê-lo.
Vitória via bruxas à volta da filha e batia-lhe com uma vassoura. Custódio voltou da tropa do Ultramar com vozes dentro da cabeça, vozes que não o deixavam em paz e que não conseguia suportar.
Francisco teve ataques epilépticos.
Almerinda estava em casa. E levaram-na para o Hospital Miguel Bombarda.
Levaram-nos todos e eles por lá continuam, 20, 30, 40 anos depois.
Uma vida depois.

JAIME
Nessa altura já sentia uma pressão incómoda na cabeça e, incapaz de se defender, foi internado pelo Partido na Pensão residencial de Lisboa, em Alcobaça.
“Mandavam para lá tudo. Fui para lá depois de terminar com a Narcisa. Havia alguns 200 ou 300 homens, andava tudo entre os 40 e os 50 anos. Foi um partido que me lá pôs, mas não digo quem foi! Não o gramava, ainda hoje não o gramo! O Partido lixou muitos com essa brincadeira!”, enerva-se.
Um dia revoltou-se. Jaime recusou beber o café que a empregada lhe servia. Ela também era do Partido. Desconfiou daquela bica.
“Vi logo que eram coisas para me fazer mal, para me tramar”. Tinha droga.
A mulher, desmascarada, chamou os bombeiros e Jaime foi levado para o Miguel Bombarda.

CUSTÓDIO
Os doentes crónicos, também chamados de evolução prolongada ou residentes, partilham a unidade com os agudos, os temporariamente internados, à espera de alta hospitalar. Os crónicos, esses, só saem mediante “alta divina” – quando Deus quiser.
Custódio Zorro já conhece a data da sua: “Ouço uma voz que me diz que vivo até aos 294 anos”.
O “Músculos”, assim apelidavam este alentejano quando trabalhou nas obras em Lisboa, soma 61 anos de vida e 21 de internamento. Atira as culpas para os 27 meses de comissão no Ultramar, em Angola. “Foi difícil, não sei explicar”, esquiva-se, olhos húmidos colados ao chão, à procura de uma resposta.
Em 1972, quando voltou à Metrópole não tinha rédea nos nervos. Começaram os internamentos intermitentes.
“Atirei-me para um poço. Não me queria matar mas fui obrigado a isso porque as vozes diziam – atira-te ao poço! Despi-me, fiquei só em trusses e camisola interior”.
Na cabeça de Custódio estão trancadas vozes há mais de 30 anos. “Elas têm sido más. Dizem atrocidades em relação a mim. Tenho a impressão de que é o radar do Vaticano, ouço a voz do Santo Padre, do Papa João Paulo II, ouço a voz dele, ouço a voz do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Dizem-me coisas de que não sou apreciador, chamam-me homossexual”.

O drama de Custódio Zorro é saber que o que se passa na sua cabeça não é real, mas não compreender como escuta, de facto, uma impossibilidade.



No Miguel Bombarda o impossível está sempre a acontecer.
O homem que passeia pelo hospital com as mãos às cambalhotas como um malabarista, está é mesmo a puxar o intestino para fora da barriga, escoltado pela sua múmia de estimação. A Rainha de Portugal sai de vez em quando para ir ao banco reclamar o seu dinheiro, seu por poder legítimo e título. O primo do ex-líder dos socialistas espanhóis, Felipe Gonzalez, reivindica o direito dos doentes à dignidade e ao respeito. O verdadeiro noivo da Rainha Isabel II de Inglaterra marcha de um lado para o outro, sempre apressado, queixo erguido, cabelo puxado para trás, barba branca, algum orgulho ferido: em 1957 planeou matar o Duque de Edimburgo, o homem que lhe roubou a amada mas internaram-no no hospital antes que tivesse a hipótese. Até hoje.

“A esquizofrenia é o paradigma da doença mental: a pessoa não se sente doente, quem está doente é o outro. É uma doença que aparece na juventude – e quanto mais cedo pior. Faz-me lembrar A Metamorfose do Kafka: as pessoas acordam e são uma borboleta. E falam com uma convicção inabalável. De facto, é impossível dialogar com elas”, explica João Sennfelt, psiquiatra há 33 anos no Hospital Miguel Bombarda.




VITÓRIA
Alentejana de Odemira, aos 65 anos passou quase metade da vida no hospital. Do tempo que passou lá fora guarda as recordações que quer e constrói as que queria.
“Conheci o pai da minha filha, conheci-o. Na Tóbis Portuguesa, onde faziam filmes, no Lumiar. Eu trabalhava lá também, na costura, para os americanos que vinham cá fazer filmagens e precisavam de costureiras para o guarda-roupa”.
O pai da filha era produtor de cinema, mais velho do que ela. Juntaram-se e foram viver para a Rua das Taipas, em Lisboa. Depois ela adoeceu.
“Comecei a bater à minha filha com uma vassoura, para matar as bruxas, comecei a ouvir vozes. Sentia que havia bruxas dentro de casa”.

ALMERINDA
“Eu, para lhe dizer a minha idade, não sei dizer a minha idade… tenho para aí uns 60 anos. Estou cá há uns anos”. Almerinda perdeu o fio do tempo algures nos 55 anos de internamento e 78 de vida. Sabe que uma mulher a trouxe de Olhão para o Hospital mas esqueceu que essa mulher era sua madrinha. “Eu doente não estava. Não tinha nada, ela não gostava de mim…” lamenta. Esqueceu também o desgosto que sofreu, rotulado de “traumatismo afectivo” na sua ficha de admissão.
“Gosto de estar no hospital… estou à espera que me venham ver… a família!”.
Almerinda esperou toda a sua vida as visita que não vieram. O estado de apatia em que vive não permite que se revolte.

FRANCISCO
Com 68 anos de idade e 45 de internamento Francisco Costa ainda arranja força – ou raiva – dentro dele para protestar. Enquanto pôde ajudou a família na lavoura. Não conheceu a escola. Depois o pai deixou-o à porta do hospital a segui a um ataque de epilepsia. “Nunca mais fui para casa porque ninguém quis ficar responsável por mim”, arrasta as palavras. Sente-se abandonado. E foi.
“Depois de vir para aqui é que me ensinaram a ler e a escrever. Sei ler as letras de ‘empresa’”.
Entra no quarto simples, um armário, 3 camas de ferro, a mobília básica dos quartos dos doentes.
As paredes sem fotografias, sem imagens de familiares. Para quê?

AMÉRICO
Pequeno, cabelo escuro, tez queimada pelo sol, Américo soma 36 anos de internamento em 56 de vida. “A minha mãe foi fazer queixa de mim e foram-me buscar. Dava-me mal com a minha família, batia-lhes. Dava-lhes pancada. Estava excitado”.
“Vai comprar! Vai comprar! Vai comprar!”, dispara a todos os que lhe pedem cigarros. Américo é um fumador compulsivo. Um homem impaciente. Com pressa de estar noutro lugar. “Davam-me tanta medicação, um gajo avaria logo, ficava logo avariado” despeja, um tanto agastado.



“Um dia abri a porta e a primeira coisa que vi foi uma pistola apontada. Entrou um grandalhão a gritar ‘Quero ser tratado! Quero ser tratado! Quero ser tratado!’ De repente parou. ‘Eu quero ser tratado antes que mate alguém. Por isso vim aqui. Faça o favor, aqui está a pistola, senhor enfermeiro. Antes que mate alguém fale com o médico para me tratar’”. Salvou-o um momento de lucidez. A pistola tinha uma bala na câmara, era só premir o gatilho – conta o Enfermeiro Carlos Magalhães, há 30 anos a lidar com a doença mental.
“Vi um outro doente atirar-se à cabeça de uma enfermeira com um ferro. Ela tinha um diabo a trepar-lhe pelas costas acima e o homem entendeu malhar no próprio demónio – a intenção era a melhor”.



SANDRA
Sandra Araújo não via nenhum espírito maligno mas ouvia-lhe a voz atrás da porta do quarto. “Vou-te matar, és muito bonita, vou-te matar, és muito bonita… era Satanás, era”, convence-se.
Esbugalha os olhos, é uma mulher bonita, de 35 anos que soma 20 de internamentos.
O delírio é quase constante. “Fui ao Tallon, pesava 95 quilos. Agora tenho 95 quilos, 1 metro e 70. Media 1 metro e 69,7, pesava 120 quilos. Quando fui ao Tallon pesava 120 quilos, não, 130. Fui ao Tallon e estraguei a minha vida toda. Comecei a ter náuseas, alucinações, alucinações, desmaiava, não queria comer, não queria comer. Estava a tomar os medicamentos mas fazia mal. Em vez de tomar um, tomava 3. Para emagrecer depressa”. Resultado: “Em 15 dias passei de 130 quilos para 53. Parece mentira mas é verdade”, afiança.
Como é verdadeiro, mas só para ela, que em Julho vai passar 3 meses na Noruega, com um irmão e que no próximo ano, tem alta.
“Aqui há muita força oculta, coisa que eu não admito. Mas muita força oculta que aqui há! Magia negra! As enfermeiras negras e mulatas é que fazem disso, há muito feitiço que não consigo tirar”, acusa. Identifica as macumbeiras porque mascam pastilha elástica, rangem os dentes, mas já foram todas mandadas embora, a primeira enfermaria de mulheres é agora um lugar muito mais seguro.



Atrás de muros de 4 metros – e arame farpado – os doentes de evolução prolongada sentem-se protegidos.
Sem família ou por ela rejeitados, porque é mais cómodo mantê-los no hospital, o seu número vai diminuindo, à medida que cedem à idade e à doença.

Hoje, Jaime Amaro não despe o pijama. Sábado é dia de folga e o homem que o Partido mandou para uma pensão de Alcobaça e de lá para o Hospital Miguel Bombarda quer apreciar o seu descanso.
Quando pode, aproveita para voltar à carga. “Eu estava bom, estava lúcido! Como estou agora, ao pé de si, a falar bem. Sabe bem que eu sou lúcido, não sabe que eu sou lúcido?”
Um bocadinho desorientado, emociona-se.

Adapt. Texto de Ana Cristina Câmara



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Os doentes crónicos, também chamados de evolução prolongada ou residentes, partilham a unidade com os agudos, os temporariamente internados, à espera de alta hospitalar. Os crónicos, esses, só saem mediante “alta divina” – quando Deus quiser.
Custódio Zorro já conhece a data da sua: “Ouço uma voz que me diz que vivo até aos 294 anos”.
O “Músculos”, assim apelidavam este alentejano quando trabalhou nas obras em Lisboa, soma 61 anos de vida e 21 de internamento. Atira as culpas para os 27 meses de comissão no Ultramar, em Angola. “Foi difícil, não sei explicar”, esquiva-se, olhos húmidos colados ao chão, à procura de uma resposta.
Em 1972, quando voltou à Metrópole não tinha rédea nos nervos. Começaram os internamentos intermitentes.
“Atirei-me para um poço. Não me queria matar mas fui obrigado a isso porque as vozes diziam – atira-te ao poço! Despi-me, fiquei só em trusses e camisola interior”.
Na cabeça de Custódio estão trancadas vozes há mais de 30 anos. “Elas têm sido más. Dizem atrocidades em relação a mim. Tenho a impressão de que é o radar do Vaticano, ouço a voz do Santo Padre, do Papa João Paulo II, ouço a voz dele, ouço a voz do Cardeal Patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Dizem-me coisas de que não sou apreciador, chamam-me homossexual”.

O drama de Custódio Zorro é saber que o que se passa na sua cabeça não é real, mas não compreender como escuta, de facto, uma impossibilidade.



No Miguel Bombarda o impossível está sempre a acontecer.
O homem que passeia pelo hospital com as mãos às cambalhotas como um malabarista, está é mesmo a puxar o intestino para fora da barriga, escoltado pela sua múmia de estimação. A Rainha de Portugal sai de vez em quando para ir ao banco reclamar o seu dinheiro, seu por poder legítimo e título. O primo do ex-líder dos socialistas espanhóis, Felipe Gonzalez, reivindica o direito dos doentes à dignidade e ao respeito. O verdadeiro noivo da Rainha Isabel II de Inglaterra marcha de um lado para o outro, sempre apressado, queixo erguido, cabelo puxado para trás, barba branca, algum orgulho ferido: em 1957 planeou matar o Duque de Edimburgo, o homem que lhe roubou a amada mas internaram-no no hospital antes que tivesse a hipótese. Até hoje.

“A esquizofrenia é o paradigma da doença mental: a pessoa não se sente doente, quem está doente é o outro. É uma doença que aparece na juventude – e quanto mais cedo pior. Faz-me lembrar A Metamorfose do Kafka: as pessoas acordam e são uma borboleta. E falam com uma convicção inabalável. De facto, é impossível dialogar com elas”, explica João Sennfelt, psiquiatra há 33 anos no Hospital Miguel Bomba.


Todas elas são de deitar as mãos á cabeça, mas esta é mesmo surreal....


Impressionante




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