Nessa noite chovia. Era uma daquelas noites em que o céu, próximo de nós, descarregava incessantemente todo o seu peso sobre as luzes da cidade e as pessoas corriam abrigando-se de arcada em arcada, por entre os automóveis imóveis no engarrafamento. Tínhamos combinado encontrar-nos à porta do cinema às 18:45h para, antes do filme, comermos qualquer coisa e eu aguardava já há algum tempo. No meio de toda aquela lufa-lufa de gente e carros, vi-te a chegar. Vinhas chateada. Tinhas molhado a saia nova ao atravessar a estrada (um daqueles parvos que não olham a quem passa e conseguem acertar em todas as poças de água que encontram) e abanavas incessantemente as suas pregas tentando minimizar os estragos. Sorri-te e tu sorriste-me. Fomos a um café ali perto, pedimos chá e ficamos ali sentados a olhar pela vidraça distraidamente sem nada de especial para dizer. Olhei-te e senti aquela paz morna que se sente quando, num dia de chuva nos deixamos ficar na cama a sornar ou como quando nos deixamos embalar por um brandy tomado ao fim da noite frente à lareira, e recostei-me na cadeira. Na mesa ao lado, um casal discutia enquanto o seu filho, alheado, construía complexas imaginações com algumas pedritas de Legos, que não, que teria que ir ao jogo pois já tinha combinado, e eu, que quando quero ir a algum lado estás sempre ocupado e tenho que ir sozinha, vais sozinha porque queres, senão telefonavas à tua irmã, é sempre a mesma coisa, lembras-te, já no ano passado por esta altura… e os Legos caíram. Viramo-nos ambos para a mesa ao lado, subitamente atraídos pelo ruído. O miúdo chorava já e os pais ralhavam com ele violentamente pois não te sabes comportar em lado nenhum, estou farto de te dizer que os Legos não são para trazer, já não sei o que fazer mais, este puto não vai dar nada. Ajudei o miúdo a apanhar os Legos e este olhou-me com aquele meio sorriso autista que me deixou amargo. Olhei uma vez mais para o casal que já não discutia e sorria complacentemente. Disseste-me que talvez tivesses que ir trabalhar para fora durante uns meses e eu perguntei-te para onde. Talvez para Paris, disseste. Fiquei num silêncio estúpido, acabrunhado. É só por uns três meses… nem vamos sentir. Pedi a conta ao empregado do café e, quando saíamos, o miúdo veio ter connosco e ofereceu-nos uma pedra de Lego a cada um, uma vermelha e uma amarela. Tu ficaste com a amarela. Cá fora, debaixo da arcada e com a chuva a cair sobre a multidão, sobre os carros agora furiosos, sobre os pedintes e os polícias, sobre os cães vadios que passavam os caminhos de todos os dias, olhámo-nos uma vez mais e beijámo-nos. Acho que já não me apetece ir ao cinema, disseste-me. Amo-te, disse-te. Afastamo-nos um do outro sem nada mais a dizer, sem promessas, sem contratos a rasgar, sentindo cada um de nós que o mundo iria continuar a girar lentamente sobre um eixo imaginário, a prender-nos incessantemente pela gravidade, a fluir inexoravelmente por entre os dedos e que a chuva não iria parar tão cedo. Passados estes anos, tenho ainda a pedra vermelha na gaveta e, de vez em quando pego-lhe e tento imaginar como teria sido se chegássemos a ter ido ver o Fight Club.